As companhias aéreas estão a dar um passo perigoso no uso da inteligência artificial. A promessa de bilhetes personalizados pode transformar-se num pesadelo: pagar mais apenas porque um algoritmo sabe que precisa de voar com urgência. Este é o início de uma perigosa nova era na aviação comercial!
Do Uber às companhias aéreas
A Uber ficou famosa pelos preços dinâmicos que ajustam oferta e procura nos seus VTC (veículos de transporte com condutor). A companhia aérea Delta Airlines foi mais longe este verão e personalizou preços com base na urgência dos utilizadores.
Os algoritmos de IA que propõem esta mudança, recolhem toda a informação possível sobre os passageiros para ajustar o preço mais alto viável.
Aviação comercial: preços baseados na vigilância
Nos Estados Unidos já lhes chamam “preços baseados na vigilância” (surveillance pricing). O princípio é simples e inquietante: empresas venderem produtos e serviços de forma personalizada através de algoritmos de IA que analisam toda a informação disponível sobre cada cliente.
Na Delta Air Lines foi isso que se quis implementar, mas a ideia tornou-se pública e alvo de forte crítica. Vários senadores norte-americanos chegaram a publicar uma carta aberta exigindo ao CEO da companhia explicações sobre esses planos.
A proposta era eliminar os preços estáticos e substituí-los por preços dinâmicos ajustados ao valor que cada cliente estaria disposto a pagar.
Fetcherr e o modelo de mercado
Empresas como a Fetcherr, que colabora com a Delta ou a Virgin Atlantic, desenvolvem estes sistemas desde 2019. Contam com especialistas em deep learning e com um “Large Market Model”, um modelo de IA capaz de gerar preços personalizados com base na informação recolhida de cada utilizador.
O CEO da Fetcherr, Roy Cohen, explicou que este modelo é treinado “com todos os dados que podemos recolher”.
No site da empresa afirmam que estes sistemas poderiam aumentar os lucros das companhias aéreas em 4,4 biliões de dólares anuais.
Que dados estão em causa
Para recolher essa informação, os sistemas utilizam canais de terceiros: histórico de compras do passageiro, histórico de navegação, geolocalização, atividade nas redes sociais, dados biométricos ou situação financeira.
A ex-membro da FTC, Lina Khan, já alertara para cenários preocupantes. Um exemplo: uma companhia aérea cobrar mais caro a um passageiro porque a empresa sabe que ele acabou de sofrer uma morte na família e precisa de viajar rapidamente.
O limite do “umbral da dor”
Em julho, o presidente da Delta, Glen Hauenstein, declarou esperar que, até ao final do ano, 20% do preço dos bilhetes fosse determinado individualmente por estes sistemas de IA.
Na altura, este valor era 3%, o triplo do registado no outono de 2024. O objetivo final era abandonar totalmente os sistemas tradicionais de fixação de preços.
O sistema iria explorar o chamado “umbral da dor” de cada cliente, definindo a quantia máxima que os dados sugerem estar disposto a pagar. Urgência implicaria preços mais altos, enquanto viagens de rotina custariam menos.
O excedente do consumidor
Existe um conceito económico que ilustra bem esta lógica: o excedente do consumidor, a diferença entre o que um cliente está disposto a pagar e o que efetivamente paga. As empresas procuram capturar esse excedente, e a IA torna isso quase perfeito.
O risco é claro: se os consumidores pagarem sempre o máximo, restar-lhes-á menos rendimento para outros gastos.
E na Europa?
Na Europa, planos como este enfrentam maiores dificuldades.
O Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) proíbe decisões automatizadas baseadas em dados pessoais com efeitos significativos sobre o utilizador, exceto com consentimento explícito.
Aviação comercial e os preços dinâmicos
As companhias aéreas sempre os aplicaram, variando o valor conforme o dia, a hora da semana ou a antecedência da compra.
Empresas como Uber ou Cabify também os utilizam, gerando polémicas, como a suspeita de preços mais caros quando a bateria do telemóvel estava fraca.
Contudo, estes sistemas não envolvem a recolha massiva de dados e a criação de perfis de utilizador que os preços baseados na vigilância propõem.